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domingo, 18 de julho de 2010

O papa das abelhas

MEMÓRIA
Padre Moure, em 2002, em encontro na sua cidade natal, Ribeirão Preto: a seu lado, uma colônia de abelhas Frieseomelitta varia
O padre Jesus Santiago Moure pode ter sido um dos últimos de sua espécie. Formado nos rigores da vida religiosa, cedo abraçou os estudos de entomologia e fez deles sua redenção. Tornou-se uma referência mundial no gênero
Publicado em 17/07/2010 | José Carlos Fernandes - Gazeta do Povo


Há uma semana, em Batatais, interior de São Paulo, morreu o padre e cientista Jesus Santiago Moure. Tinha 98 anos, 68 deles passados em Curitiba, onde desenvolveu pesquisas científicas no Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Paraná. A sala 395 do Centro Politécnico era seu quartel-general. Dali partiu para o mundo, literalmente, sendo aclamado como o maior especialista em abelhas tropicais e papa da taxonomia numérica – para dizer o mínimo.

Os números que envolvem o padre Moure são superlativos: publicou 216 trabalhos e propôs cerca de 500 nomes de abelhas – a primeira foi a Augochloropsis liopelte, em 1940. Seu fichário de 12 mil itens, datilografado, hoje serve de bíblia para entomólogos com um mínimo de juízo científico. A simples menção a sua presença num congresso de estudiosos era o bastante para que muitos – não sem antes respirar bem fundo – se aproximassem, pedissem licença para tirar uma foto e arriscassem falar das próprias investidas. Não era recomendável vacilar.
A entrega do padre Moure à pesquisa, com perdão ao trocadilho, era sacerdotal. Embora não fosse dado a discursos sobre sua própria atividade – principalmente as religiosas – impressionava pelo tempo dedicado aos estudos. Numa rara licença sobre sua intimidade, confidenciou ao entomólogo mineiro Gabriel Augusto Rodrigues de Melo, 43 anos, um de seus discípulos, não dormir mais do que três horas por noite.
A vida insone explica em parte o volume de sua produção. E deixa a curiosidade sobre quem era o homem por trás do cientista. Eis uma questão difícil de responder. Até onde se tem notícia, padre Moure não deixou escritos sobre outro assunto que não ciência. Segundo a professora Danúncia Urban, 77 anos, sua mais longeva colaboradora no Departamento de Zoologia da UFPR, ele escrevia cartas, à mão, todos os dias. Seus interlocutores: cientistas dos quatro costados, como Newton Freire-Maia.
Gabriel de Melo e Danúncia Urban na sala de Moure no Politécnico: ciúme das abelhas
Danúncia, Gabriel – e outros companheiros de ofício, como os professores Jayme de Loyola e Silva e Renato Marinoni, para citar alguns –, registraram em artigos e entrevistas a grandeza intelectual do padre cientista. Gabriel, de forma particular, chegou a esboçar uma biografia, acompanhada de levantamento iconográfico, sobre o mestre e apresentou-a na festa dos 90 anos, em 2002. Mas ainda há muito a ser feito e a ser respondido sobre o estudioso radicado no Paraná.
A grande lacuna é entender porque cargas d’água Moure abdicou paulatinamente do ministério religioso, resumindo-se a rezar missas matinais, para se enfurnar diante dos microscópios e computadores – uma de suas paixões. Para o teólogo espanhol Jaime Sánchez Bosch, diretor do Studium Theologicum de Curitiba e irmão de congregação religiosa de Moure – os missionários claretianos – a resposta é só uma: “Era sua genialidade. Ele tinha um talento incomum para a ciência. Um interesse bárbaro por tudo. Pensou em abdicar, mas ao se ver diante das oportunidades de pesquisa, não quis desperdiçá-las.”
Moure, ao centro, com Loureiro Fernandes e Carlos Stellfeld, em 1942
A pergunta intriga o próprio Jaime. Ele lembra que na década de 1930, quando o cientista Moure começa a se desenhar, havia na comunidade claretiana de Curitiba um espanhol de nome Jesus Ballarin, um expoente da filosofia e da cultura. “Ele pode ter se espelhado nesse padre e visto ali a possibilidade de mesmo sendo sacerdote participar ativamente do mundo do conhecimento”, arrisca.
O zoólogo Gabriel de Melo tem outro palpite. Ainda adolescente, no seminário menor da cidade de Rio Claro, no interior de São Paulo, Moure fez as primeiras coletas de insetos ao lado de um colega de batina, Francisco Pereira. Na vida adulta, Pereira também se tornou um cientista de renome. Melo observa ainda que antes de ordenar padre, Moure visitou museus de História Natural e trocou correspondências com expoentes da entomologia, o que já apontava para seu grande desejo de conciliar o claustro com os laboratórios.
Moure de jaleco numa excursão ao Marumbi, em 1947: ligação protocolar
O assunto é tratado com reservas na congregação de Moure, mas tudo indica que o cientista nasceu de alguma frustração pastoral e da desavença com um de seus superiores e com um bispo. O próprio padre reconheceu isso em entrevista dada à revista Ciência Hoje, em 1990, na qual declarou ter sido perseguido por acreditar na Teoria da Evolução. Quem quer que tenham sido seus detratores, acabaram fazendo um bem danado ao saber acadêmico.
O fato é que nos anos 1940, Moure deixa sua atividade na Ação Católica e se vincula a um grupo emergente de cientistas ligados ao Museu Paranaense e Museu de História Natural. Torna-se amigo de José Loureiro Fernandes, Frederico Lange, André Mayer, Carlos Stellfeld, João José Bigarella. Em pouco tempo viria a universidade. De uma vez por todas, o pastor seria reduzido ao mínimo múltiplo comum.
Essa disparidade entre os dois Moures é, com folga, um dos traços mais curiosos a ser explorado em sua futura biografia ampliada. Ouvindo os confrades e os professores é, quase sempre, como se falassem de pessoas diferentes. Em 2002, por exemplo, padre Moure chorou na UFPR ao se despedir de cada colega de trabalho. Estava de malas prontas para a casa de repouso no interior. No claustro da Paróquia do Coração de Maria, na Avenida Getúlio Vargas, impera a imagem do cura contrito, casmurro, e que cumprimentava com o dedo mindinho.
Sánchez é um dos raros a poder falar sobre o Moure padre. Conheceram-se em 1977. Nos muitos anos em que dividiram a mesma comunidade puderam tergiversar sobre os vários campos do saber. “Era um homem tímido. Mas se provocado, se tornava uma boa conversa”, opina. Conta que seu confrade não perdia uma corrida de Fórmula 1 e que adorava os cachorros. Chegou a ser derrubado por um pastor alemão, Jade, no quintal dos claretianos. Quebrou-se, é claro, sem mágoas com o cão.
Nada que o afastasse do trabalho na UFPR. Consta que mesmo acamado por duas quedas – uma no quintal de casa e outra na universidade – fez bancas e orientação para doutorandos, reiterando a imagem de pesquisador espartano, que não deixava espaço para manifestar cansaço ou tristeza. “Ah! Mas ele adorava carros...”, sugere Danúncia, somando-se a Sánchez nas inconfidências. O primeiro, na década de 50, foi um Delfini, que ele aprendeu a dirigir numa única tarde no Tarumã. Beirando os 90 anos, cometeu a peraltice de dirigir sozinho até Joinville.
No dia a dia, contudo, não havia brechas: era preciso conquistá-lo. Danúncia, com folga a pessoa que melhor conheceu o padre Moure, falou com ele a primeira vez em 1951, em uma banca para entrar na graduação de História Natural. Não lembra o que ele lhe perguntou, embora não esqueça do que teve de responder aos seus inquisidores: “Por que o papagaio tem as penas verdes...” Ela ainda acha graça. E não perde as contas do rosário.
Incentivada pelo padre a pesquisar, recebeu dele incumbências sempre aos poucos. “Da primeira vez ele me mostrou duas abelhas e perguntou: ‘São iguais?’ Tive de desmontá-las. De outra, ele me deu um grupo de abelhas para estudar. Tinha muito ciúme da sua coleção.” Apenas quando já estava em vias de se aposentar é que Danúncia tomou coragem, entrou no gabinete do mestre e sem muitos dedos abriu uma das gavetas e carregou uma série para estudos. A essa altura, já somavam mais de quatro décadas de pesquisa científica em conjunto.
Moure, Millirón, Michener e o paranaense Bigarella, em outubro de 1955
“É natural”, diz Gabriel. Moure passou uma vida fazendo prospecções nos fins de semana. Aqueles cabos de vassoura com um coador gigante na ponta ainda estão atrás da porta de seu gabinete. Enquanto pôde, o fez. E à revelia de seu pé no freio com os colegas – o que não fazia nas estradas, segundo consta – dividiu com eles a organização do magnífico Catalogue of bees (Catálogo de Abelhas Tropicais, 2007). A devoção que a ele dedicam nasce dessa parceria à moda antiga. “Ele era uma espécie em extinção”, avisa Gabriel. Palavra de cientista.

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